segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Nem tente provar o contrário...

De pedaço em pedaço se faz o remendo, de cara pro vento o tempo passa correndo, corre exato na linha reta do espaço que existe entre os sonhos e fatos, corre que corre, nunca descansa. E nunca permite retroceder o que avança. Às vezes desfaz o que era feito de Nada, mas sempre reforça o que é feito de Tudo. De pedaço em pedaço se constrói a engrenagem, feita dente por dente, olho por olho. Se for sacanagem, olhares deitam-se ao chão. Mas se for de verdade, olho no olho, que o resto é pura ilusão.

De pedaço em pedaço eu me deixo, e me ajeito. De pedaço em pedaço, me refaço, retalhado que seja, inteiro outra vez.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Corrente contínua

Nem tudo o que é desconhecido precisa ser temido, ou evitado, apesar do instinto do medo tentar, de várias formas, distorcer o fato de que sim, o novo pode ser encarado de frente, com toda a coragem. Porque simplesmente nada acontece à toa, sem ter sido muito bem pensado, antes de aparecer no caminho. É preciso muito cuidado, porque dar ouvidos ao medo só traz alívio naquele momento. E é o depois que realmente importa.

Pode ser que o que acontece fora dos planos de agora simplesmente faça parte de um plano de antes, do qual a lembrança é tão vaga, que está quase esquecido. É preciso ter cuidado com interrupções abruptas, porque podem ser desnecessárias, como são desnecessárias palavras depois de um ponto final. No fim das contas o desconhecido pode ser simplesmente algo a ser reconhecido como o elo que vai religar o que se rompeu algum dia.

Realeza

Ela vem dançando nos ventos, bailando nas nuvens, sussurrando canções de silêncio aos seres que têm ouvidos sensíveis, que ouvem mais do que falam, que falam a língua de um mundo que o mundo deixou de entender.

Ela traz, nas pontas dos dedos, as certezas que falham em nossos peitos cansados de tanto respirar esse ar viciado por fumaça e progresso ao avesso. Ela vem delicada, flutuando nos sonhos que deixamos nos travesseiros.

Ela coloca seus pés descalços na terra, e muitos tremem de medo. Porque sua bruta beleza assusta a quem esperava a suavidade de uma linda princesa. Mas ela é rainha, majestosa Verdade, e não se abala com sua corte burguesa.

À moda

A feitiço das fugas é feito no caldeirão da frivolidade, por horas a fio, em fogo brando. Misturando a covardia das certezas adultas com os temores do materialismo diário. Acrescentando porções de corações partidos por egoísmos tratados como fingidos companheirismos, é hora das pitadas de ensaiados cinismos, sorridos sem jeito, diante das reações diversas que advém das invejas sem freio. Ao engrossar do caldo, acrescenta-se o leite materno de toda vingança, que sai do seio da mente de quem mente e trai a quem finge que ama, por ser incapaz de amar a si próprio mais do que ama uma cama. Quando essa mistura exala seu perfume característico de caminho sem volta, adicionam-se copos de álcool, e drogas de todos os tipos, para firmar as desculpas que amortecem a ponta da língua. Então apaga-se o fogo e leva-se imediatamente o caldeirão para a geladeira das culpas, onde terá seu merecido descanso.

Rende inúmeras porções.

Canção do concreto

Dispensei o passeio pra ver a verdade, pra saber se a verdade é mesmo o que dizem, ou o que escondem, atrás dos lábios pintados, dos dentes cerrados, dos olhares vidrados. Eu vim pra ver e  ouvir, com a miopia herdada e a surdez bem disfarçada, e saber se é mesmo real o chão que se pisa.

Mas o chão que se pisa, eu vi que é de mentira, é ilusão partilhada entre os que vivem nas nuvens. As nuvens dos valores torcidos pelas histórias amargas que os fracos não conseguem engolir. As histórias de muitos que ignoram o pouco que é necessário para pisar com segurança na certeza da terra firme.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Ficção

Procura-se vida, como a que existe aqui. Baseada na água, no carbono. Procura-se algo igual ao que existe aqui, mas o que existe aqui é a única coisa que existe? Talvez a resposta não seja subestimar Algo tão imenso, presumindo que a diversidade não exista lá fora como existe aqui dentro.

Procura-se vida, como a que existe aqui. E tomara que jamais seja encontrada, porque já basta de guerra, fome, desigualdade, ignorância, descaso, indiferença. Torçamos para que sejamos o único exemplo desse tipo de vida, porque Algo tão belo não merece a pequenez do que trazemos por dentro. 

Procura-se vida, diferente da que existe aqui. Para que seja possível aprender e avançar, deixando para trás esses anos de escuridão disfarçada. Procura-se vida, para que seja possível viver e conviver, existir e coexistir, equilibrar e ser parte do equilíbrio.

Banco de dados

Entender os vivos é estudar os mortos, porque os mortos deixam suas marcas para a vida que continua. Deixam linhas, entrelinhas, passos, anotações. Deixam pegadas, linguagens, recordações. Deixam tudo o que é preciso para que o fluxo continue, ligando o visível ao invisível, ensinando que a morte não interrompe o curso de nada, apenas transforma o Todo. 
 
Entender o passado é corrigir o presente fazendo tudo diferente. Exatamente como acertar a lição seguindo o exemplo, como ensinaram na escola, nos tempos em que as distrações não eram tantas. No tempo em que muitas distrações de hoje ainda não se disfarçavam de responsabilidades. Entender o passado é enxergar que nem tudo, hoje, é realmente necessário.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Natalidade

As crianças, diferentes de nós, cumprem suas promessas, mesmo quando prometem o que não podem. Isso, que elas não podem, só nós achamos que não podem, nas restrições dessas amarras com que a idade nos envolve. Então as crianças podem tudo em suas promessas, mesmo nas mais loucas, como quando prometem jamais nos abandonar na feiura da velhice, dizendo que sim, elas vão voltar, se jogando em nossos braços, para um abraço rápido e eterno, como se jamais as tivéssemos deixado lá atrás, empoeiradas dentro dos baús que escondemos do tempo, o tempo todo, a vida inteira. Elas não se magoam, e voltam tão risonhas quanto antes, para os lugares de onde nunca deveriam ter sido tiradas, só para alegrar o coração de quem já quase não tem mais coração, de tantas surras adultas que levou.

Vem, volta pra casa... e mata com força toda essa saudade!

Diálogo

Os dias são mais do que nomes ou números, para que possam ser contados e lembrados. São mais do que os cadenciados ruídos das engrenagens dos relógios, para que sejam temidos e odiados. E são mais do que simples quadradinhos desenhados nos calendários.

Os dias não podem ser tratados de forma igual, como se passassem pela avenida vestindo uniformes. Não podem ser entendidos apenas como úteis ou inúteis. E nem podem ser desperdiçados, porque em sua viagem trazem passagens apenas de ida, nunca de volta.

Os dias precisam ser mimados, tratados com carinho e respeito, para que não se enraiveçam contra quem os deve aproveitar. Precisam de cuidado, para que não fujam em disparada. E precisam de atenção para que não se demorem mais do que o necessário.

Os dias precisam de tudo, assim como tudo precisa deles.

domingo, 23 de outubro de 2011

Superação

Depois do tombo doído chega o antídoto para o desânimo: a reflexão. O momento de fechar os olhos para enxergar, de calar a boca para dizer à si que não, isso não pode acontecer de novo.

De reflexão em reflexão o coração viaja de uma lembrança para outra, na árdua tarefa de encontrar o elo, o defeito, o alheio. Mas o coração, que jamais mentiria, não mostra o alheio.

Mostra a verdade: a origem do erro, a fonte do problema, o reflexo no espelho. Não é possível culpar segundos ou terceiros. Porque isso só é justo aos olhos vendados da justiça humana.

Entender o próprio pensamento, e perdoar o próprio erro, são os remédios que não ardem nos arranhões dos tombos. Pedir perdão é o que cicatriza: a marca fica, mas não dói mais para levantar.

domingo, 16 de outubro de 2011

Cada um, cada um

Cada um sabe o valor de uma lágrima, de um sorriso, de um abraço, de uma saudade. Cada um tem um valor, cada um tem uma medida. Cada um tem seu peso, cada um tem seu alívio. Cada um tem seu momento. Pode ser um, pode ser um monte. O importante é que cada momento é de cada um, e de ninguém mais.

Impossibilidades

É impossível encher um copo já cheio. É impossível percorrer um caminho estando parado. É impossível dormir sem sono. É impossível beijar sem uma boca. É impossível deter uma verdade. É impossível perder o que não pertence a ninguém. E é impossível refletir sem consultar um espelho.

Os espelhos

Pode-se usar os espelhos para: ver o que há atrás do carro; checar relógios de água ou eletricidade; desviar a luz; construir microscópios, lunetas, telescópios, miras; retocar a maquiagem; divertir distorcendo imagens; iludir com truques de mágica; esticar uma carreira de pó; escrever mensagens com batom; experimentar óculos e roupas; coletar energia solar. E muitas outras coisas. Inclusive olhar para si mesmo.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Herança

Gargalhadas, surpresas, abraços, beijos, conversas, silêncios. Lágrimas, tombos, cortes, raspões. Loucuras, rompantes, impulsos, erros, acertos. Carícias, carinhos, respirações, músicas, danças. Roupas, fantasias, disfarces. Travesseiros, lençóis, cobertas. Enfeites, presentes, lembranças, fotografias. Amores, paixões, rivalidades, indiferenças, saudades. Ganhos, perdas, chegadas, partidas. Refeições, bebedeiras, sobremesas. Avenidas, ruas, estradas, esquinas, trilhas. Mares, rios, cachoeiras. Férias, trabalhos, estudos, colegas, amigos. Aventuras, sustos, perigos, conflitos, pazes. Famílias, sossegos, passeios, sóis e chuvas. Vidas e mortes, mortes e vidas. Idas e vindas. Isso e muito mais: tudo o que foi, tudo o que é, tudo o que vai ser. Sempre, pra sempre.

Mortalidade infantil

Correndo ela vai, olhando pra trás, menina moleca. Sorrindo e gritando, mais baixo, mais longe. Fazendo voar os cabelos no vento, bochechas vermelhas. Vai indo, vai indo. Cai sentada no chão quando olha de volta pra trás, mas levanta e vai sumindo na rua, sumindo na praia, sumindo no mundo das idades adultas. Ela vai, essa danada, pobre coitada, pro fundo de um velho baú. Pra se deitar, linda, mas empoeirada. E com ela vão os cheiros de chuva à tarde, os cheiros de chiclete, bala, primeiro beijo, último amor. Correndo ela vai só pra depois se perder dentro de peitos estranhos, com desejos estranhos, ideais distorcidos. Vai ela correndo morrer em tão tenra idade. Corre, menina, e não olha pra trás, pra não ter saudades de quem já ficou velho demais pra você.

Vai, vai embora... mas promete que um dia você volta pra sempre?

Açougue

A carne é daninha, e nem é erva, pra se fazer um chá, um banho, um tempero, um cigarro. A carne é cegueira, intolerância, veneno, violência. É segredo escondido, é grosseria, solidez pra restrição. A carne é só o começo de um longo caminho. Depois melhora.

Soma

Cada olho, uma janela. Cada boca, uma porta. Cada ouvido, um confessionário. Cada corpo, um templo. Cada templo, uma história. Cada história, uma repetição. Cada repetição, um aprendizado. Cada aprendizado, uma vitória. Cada vitória, uma união. Cada união, uma nova história. E toda história se entrelaça, com sutileza, fingindo acaso. Aumentando ou diminuindo o tamanho do mundo como se esse fosse mesmo flexível, e inteligente.

Bonitinha

A beleza de tudo o que existe não está contida nas formas ou cores. Nem nas luzes ou sombras. Muito menos nos sentidos da visão, do olfato, da audição ou do tato. A beleza de tudo o que existe se esconde, feito coisa rara. Brinca de esconde-esconde, mas querendo ser encontrada. Como criança escondida atrás da porta. Corre pra lá e pra cá, pra no fim ser mais feliz nos braços de alguém.

A beleza de tudo o que existe não reside no trabalho sem amor, nem no beijo sem carinho, muito menos no abraço fingido. Ela só aparece quando encontra seu conforto nos sentimentos verdadeiros. Como a criança nos braços dos pais, que faz valer a imensidão das saudades contida nos mínimos minutos. A beleza de tudo o que existe não se mostra aos defeitos: reside nas qualidades.

E a beleza de tudo o que existe está por aí, para quem quiser vê-la.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Metrópole

A cidade dos sonhos tem caminhos largos e pavimentados, não apertadas ruas de asfalto remendado. Tem árvores, jardins e nenhum carro. Casas simples, mas espaçosas. No ar, aroma de café e pão de manhã, e café e bolo no meio da tarde. Perfume de refeição no almoço e no jantar. Cheiro de mato e barulho de grilo para desfazer o cansaço. Criançada brincando do lado de fora das paredes. Poucas luzes, para fazer valer a luz do luar. Menos gente, e mais pessoas.

Dimensões invisíveis

Das dimensões invisíveis pouco se sabe, mas muito se obtém. Pode ser pelas vagas lembranças, ou pelas estranhas certezas. Pelos amores gratuitos, ou pelas doces presenças. Sabe-se que a mágica vem de lá, mas as cartolas quase nunca aparecem. Lá fica a casa do sonho concreto. Aqui, o concreto é armado.

Das dimensões invisíveis chega o socorro na hora certa, não na hora pedida. Vem com remédios sensatos curar as doenças abstratas que escurecem o coração. Chega tudo em silêncio discreto, muito cuidado e bom senso. Às vezes nem são necessárias palavras: já conhecem as causas pelos efeitos.

Das dimensões invisíveis pode-se tentar fugir, mas a certeza de suas existências está gravada fundo, em lugares de onde é impossível removê-la. Faz de toda tentativa de fuga uma bobagem infantil. Um jogo com horários marcados, e uma hora correta para tudo que precisa acontecer, com precisão. Como se o bolo já estivesse pronto muito antes que a receita fosse escrita.

Estranheza

O vento não soprou, a chuva não caiu. Nenhum som foi ouvido, a luz não se acendeu. O dia foi rápido, a noite nem veio. O sono perdeu o perfume, a cor sumiu da parede. O muro separou dois dos lados, o pó da construção invadiu os cômodos vazios. O conforto fez doer pela mesmice de si mesmo.

A paciência desapareceu, a esperança já se despediu. O vazio chegou com sua mobília invisível, fez dos restos sua nova morada. A razão expirou nos caminhos estranhos dos sentimentos. As nuvens se foram, as sombras são outras. O elo se partiu, a balança pendeu, o peso exagerou e tudo ficou diferente.

Econtros e despedidas

Mais próximos das distâncias, do que distantes da proximidade. É o efeito do contrário, que distrai o bom senso da similaridade, disfarçando a simplicidade com estranhos figurinos.

Mais distantes entre si por dentro do que próximos na física da presença: separados por muros e grades construídos com matérias abstratas, como julgamentos, ou temores.

Inteligência

Sabemos que, no fim, quem vence é a inteligência. Senão não existiria a lógica, e a lógica já se provou que existe. Estamos um passo atrás, mas já conseguimos enxergar coisas, mesmo através de lentes embaçadas. A certeza disso fica gravada lá no fundo, em lugares que, às vezes, nem imaginamos existir dentro desses corpos surrados.